Se ainda restavam algumas dúvidas em relação à natureza do regime especial de investimento privado, o Decreto Presidencial n.º 250/18, de 30 de Outubro (que aprova o Regulamento da Lei n.º 10/18, de 26 de Junho – Do Investimento Privado), que já tivemos a oportunidade de comentar , tratou de dissipar.
As dúvidas que haviam na altura da aprovação da Lei do Investimento Privado (que adiante iremos designar somente por “Lei” ou, abreviadamente, “LIP”), que faziam todo o sentido e suscitavam interpretações diferentes, justificavam-se porque não havia uma destrinça (fora a que se prendia com os benefícios e facilidades que se podem atribuir) entre a natureza do regime especial e o regime de declaração prévia. Houve quem entendesse que o regime especial correspondia a um regime contratual. Não é esta a natureza que lhe foi dada.
Por isso, desafiamo-nos a analisar os principais aspectos sobre o regime contratual, numa perspectiva da história do Direito, bem como do Direito vigente. O objectivo é analisarmos em que medida a não consagração de um regime como o tal pode assumir-se como relevante ou não, sendo que no final deixamos a nossa opinião em face da exposição feita.
Historicamente, o regime contratual foi adoptado, com outros regimes (embora não fosse assim sempre), nas leis de investimento que vigoraram anteriormente.
A Lei n.º 10/79, de 22 de Junho, que foi a primeira a autorizar os investimentos estrangeiros em Angola, após a independência, já previa o regime contratual, definindo que a relação entre o investidor estrangeiro e o Estado angolano era regida ao abrigo de um contrato de investimento privado.
Também a Lei n.º 15/94, de 23 de Setembro, que revogou a Lei n.º 13/88, de 16 de Julho, previa o regime contratual (a par dos regimes de declaração prévia e da aprovação prévia).
A Lei n.º 11/03, de 11 de Maio que lhe seguiu, assim com as leis posteriores, nomeadamente, a Lei n.º 20/11, de 20 de Maio e a Lei n.º 14/15, de 11 de Agosto também previam o regime contratual. Nestes dois últimos diplomas, o referido regime era o único.
A não consagração do citado regime na actual LIP – embora continue a ser uma exigência para sectores que são objecto de regulação especial e que o aludido diploma se lhes aplica em alguns aspectos – foi bastante discutida na fase de elaboração e aprovação do diploma. Aliás, sempre foi uma vexata question, pois houve quem já tivesse manifestado que não deveria ser um regime aplicável para todos os projectos de investimento privado.
Maria Luísa Abrantes referindo-se, por exemplo, às principais constatações que se verificaram antes da aprovação da Lei n.º 10/79 (de acordo com o “Relatório ao Projecto de Leis dos Investimentos Estrangeiros”) e que e fundaram a aprovação da Lei que a revogou, referiu-se à “(…) má preparação dos contratos(…) como facto que determinou que se assinassem contratos que não defendiam suficientemente os interesses nacionais” . Sustenta a autora que tal preparação tinha origem na falta de definição dos objectivos, na débil ou nula capacidade de negociação, assim como na falta de conhecimento da legislação que vigorava e da reduzida capacidade de elaboração de contratos.
Percebe-se assim que, embora as discussões tivessem se verificado momentos diferentes da história, nunca houve consenso em relação à submissão de projectos de investimento a um regime contratual. Todavia, e como já tivemos a oportunidade de referir, esta questão assumiu particular relevância nos trabalhos preparatórios da actual Lei, sendo que se colocava a questão de saber sobre a necessidade de se consagrar o tal regime. Neste sentido, foram apresentados vários argumentos sendo alguns a favor e outros contra.
Já os iremos explicitar, mas, convém referir que o ponto de partida das discussões eram as principais críticas que se apontavam ao procedimento para a realização do investimento privado ao abrigo do revogado Decreto Presidencial n.º 182/15, de 30 de Setembro, que previa o Regulamento da revogada Lei n.º 14/15, de 11 de Agosto. Toda abordagem a respeito de tais críticas deve, obviamente, ser feita dentro do contexto económico e até do quadro operacional, que previa uma desconcentração do procedimento para a realização do investimento privado pois existiam nos departamentos ministeriais (para a análise das propostas cujos seus titulares eram competentes para aprovar) as extintas Unidades Técnicas de Investimento Privado (UTAIP). Para os projectos cuja competência para aprovação era do Titular do Poder Executivo para os da Unidade de Investimento Privado.
Para lá de toda a solenidade que estava subjacente à celebração dos contratos, em alguns sectores com os quais tivemos inclusive a oportunidade de colaborar era notório um bom nível de preparação por parte dos técnicos e a existência de condições materiais para o êxito e celeridade do processo de negociação e de assinatura de contratos. Porém, não era assim que procediam algumas das UTAIP’s, pois demonstravam alguma falta de preparação.
Diante disso e como já demos nota, na fase de elaboração e aprovação da actual LIP, houve quem propugnasse a eliminação do regime contratual e, também, houve quem defendesse a sua continuidade .
Contra a consagração, foram apontadas algumas razões que já tivemos a oportunidade de expor. São os casos da fraca capacidade de negociação, o que resulta em excesso de burocracia na aprovação dos projectos, e também a falta capacidade de elaboração de contratos.
A favor, foram sido apresentados argumentos como a necessidade de se conferir um tratamento melhor a investimentos de valores que, qualitativamente, se afigurem melhores em relação aos de valores mais baixos e a necessidade se proceder à negociação de benefícios e facilidades para alguns projectos.
Note-se que o n.º 2 do art.º 46 da revogada LIP n.º 14/15, em que o regime contratual era o único, já consagrava – a exemplo do que se verificou com outras leis de investimento que também previam o regime contratual – as cláusulas que injuntivamente deveriam constar nos contratos. Talvez por isso algumas UTAIP’s não procediam a uma “verdadeira” negociação limitando-se a “impor” aos potenciais investidores privados ou os seus representantes legais um modelo de Contrato.
Olhando para a solução actual adoptada, não deixa de ser curioso que ao definir as competências do PCA da Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações (AIPEX), previstas no art.º 13 do Estatuto Orgânico da referida instituição, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 81/18, de 19 de Março, consta a assinatura de contratos de investimento após a aprovação pelo Conselho de Administração da citada instituição. É o que fixa a alínea g) do aludido artigo.
Também a alínea h), que fixa como competência daquele órgão a certificação dos investimentos do regime de declaração prévia.
Isso permitia antever que a LIP que viria a ser aprovada voltaria a prever, como sucedeu em relação à Lei n.º 11/03, os regimes de declaração prévia e contratual. Refira-se que a criação da AIPEX e a publicação do seu Estatuto Orgânico são anteriores à aprovação da LIP e o seu Regulamento.
O legislador optou por consagrar um regime declaração prévia e um regime especial, sendo que os mesmos se distinguem no âmbito dos benefícios e facilidades que um e outro podem permitir. O paradigma são os benefícios fiscais.
Do art.º 38 da Lei resulta que aos projectos que seguirem o regime de declaração prévia, seja em que zona de desenvolvimento forem implementados, apenas são concedidos os benefícios que o mesmo prevê. Diferentemente, aos projectos que se inserirem no regime especial, como se pode ler no art.º 39, também da Lei, podem ser atribuídos benefícios fiscais diferentes em função da zona de desenvolvimento. São ainda definidos na citado diploma e concretizados no Regulamento, outros benefícios e facilidades para os projectos que se inserem neste último regime que nos referimos.
Chegados aqui resta-nos questionar se a não consagração terá sido uma boa opção. Em nossa opinião e em face de tudo o que já expusemos parece que não. Não obstante concordemos que o regime contratual como sendo o único também não se tenha mostrado como a opção mais acertada, parece-nos que o ideal seria voltarmos a ter o regime de declaração prévia e um regime contratual. No primeiro regime inserir-se-iam os projectos que não estivessem previstos nos sectores prioritários, ou seja, seja a indicação seria feita pela negativa. O contratual, que seria o segundo, poderia coincidir com o actual regime especial, porém, caso se optasse por esta solução o legislador deveria clarificar-se as actividades que seriam consideradas prioritárias.
Sublinhamos a referência à necessidade de clarificação porque a solução actual, prevista no art.º 28 da Lei, suscita alguma confusão pois parece confundir sectores com actividades. Ademais, não prevê determinadas actividades que poderiam igualmente ser consideradas prioritárias.
A solução adoptada em relação aos regimes e que não pressupõe qualquer negociação poderá gerar, em alguns casos, um tratamento igual entre investidores para situações desiguais o que pode ter como consequência alguma injustiça.
Pense-se no caso de um projecto de valor igual ou superior a 10.000.000 USD em relação a um projecto de valor igual a 1.000.000, 00 USD. Ambos serão implementados para actividades que se enquadram no regime especial.
As sociedades veículos de tais projectos têm, embora os valores sejam muito diferentes, o mesmo benefício de não pagarem emolumentos por um período de um ano, conforme resulta da parte final do n.º 2 do art.º 24 do Regulamento.
Além do que já referimos, pensamos que a solenidade referente à assinatura dos contratos – que se sublinhe, não é essencial – é relevante pois evidencia alguma importância que se confere aos investidores, mormente os estrangeiros.
Como aplicadores da Lei já experimentamos várias situações em que tais investidores decidiam viajar para Angola, ao tempo em que vigorava o regime contratual, para assinarem pessoalmente os contratos com os órgãos do Estado que tinham competência para o efeito.
Notas de rodapé:
(1) Cf. o nosso artigo “Nótulas sobre o novo Regulamento da Lei do Investimento Privado” em Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – Nótulas sobre o novo Regulamento da Lei do Investimento Privado, publicado no dia 30 de Outubro de 2018
(2) M. LUÍSA ABRANTES, Breve reflexão sobre o Investimento Estrangeiro e o Caso de Angola, Luanda, 2016, p. 183
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