Um tema que não tem sido objecto de discussão a nível da doutrina angolana, e até onde sabemos não tem merecido também a apreciação dos tribunais, prende-se com a aquisição de quota por sociedade de direito estrangeiro, numa sociedade angolana em sede de um processo de recuperação judicial à luz da Lei do Investimento Privado.
Julgamos que tal se deve pelo facto de o Direito falimentar angolano ainda não estar orientado para a recuperação das empresas, o que evidencia o seu total desajustamento à realidade actual.
No Direito angolano a falência, que só se aplica aos comerciantes, é regulada pelos art.º 1135 a 1312 do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembro de 1961. O referido regime fixa o processo de falência que difere do processo de insolvência (que se aplica aos não comerciantes).
No caso concreto da cessão de quotas no âmbito do investimento privado, o regime aplicável está previsto no art.º 45 da Lei n.º 10/18, de 26 de Junho – Do Investimento Privado (adiante designada abreviadamente por “LIP”).
O n.º 1 do aludido artigo consagra o dever de comunicação no caso das as sociedades veículos dos projectos possam procederem alterações que consistam no aumento do capital social, o alargamento do objecto social, a cessão de quotas ou a transmissão de acções. Este dever é concretizado pelo art.º 18 do Regulamento da LIP (aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 250/18, de 30 de Outubro) que fixa o prazo de 15 a contar da data de qualquer uma das alterações, para que se comunicar à Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações (AIPEX).
Ora, se é verdade que em relação as cessões de quotas que não impliquem importação de capitais não se suscitam muitos problemas, o mesmo não se verifica no caso contrário. O problema começa no n.º 2 do art.º 46 da LIP que sujeita à registo, junto da instituição que referimos, as cessões de quotas que impliquem importação de capitais .
Qualquer entidade não residente cambial que decida investir em Angola deve apresentar um projecto de investimento privado, podendo fazê-lo através de uma ou mais operações previstas na LIP. Esse investimento, obviamente, implica a transferência de fundos do exterior ou importação de equipamentos ou qualquer outra forma, que assim possa ser considerado nos termos por lei.
Posto isso, conjeturemos que determinada à sociedade estrangeira, não residente cambial em Angola (e não investidora), no âmbito de um processo judicial que decorre por exemplo no Tribunal de Comércio de Paris, é adjudicada à assumpção das responsabilidades por diversas dívidas de uma sociedade estrangeira que tem o estatuto de investidora privada em Angola, a transferência desta para aquela e, ainda, a cessão da quota.
Consideremos que o referido procedimento de recuperação judicial tem lugar por dificuldades financeiras da sociedade estrangeira que é investidora em Angola, estando a mesma numa situação de insolvência. No fundo, o procedimento visará a recuperação e protecção de credores.
A questão é: tendo sido sentenciado por um tribunal a cessão de quotas não implicará um valor de investimento?
Antes de respondermos a questão, convém referir que não está em causa o valor, porque a própria lei não fixa um valor mínimo, mas, a existência ou não de uma obrigação. Também convém sublinhar, na nossa análise, que estamos a partir do pressuposto fáctico que a sentença foi reconhecida junto do Tribunal Supremo de Angola, como ditam as leis processuais, pelo que não se coloca o problema da sua eficácia no território angolano.
Dito isto, convém considerar que é verdade que estando uma sociedade que tem o estatuto de investidora privada em Angola numa situação de insolvência no estrangeiro, como espelha a hipótese, poderá ter repercussão na actividade da sociedade constituída ou da sucursal registada pela mesma em Angola, porém, isto é não tão rigoroso.
Mas, se considerarmos que afecte também a sociedade em Angola, obviamente que a sociedade que vai adquirir as quotas terá que fazer investimentos à sociedade, para além de ter que arcar com as outras responsabilidades que já tivemos a oportunidade de expor. Neste sentido, entendemos que sempre implicará investimento privado externo, pois a sociedade não é residente cambial em Angola (mesmo havendo um regime próprio para que determinadas sociedades possam ter contas abertas em Angola) e a sociedade a partir do qual serão adquiridas quotas não tem/dispõe de recursos.
Por isso, julgamos que mesmo o facto de ter sido sentenciado por um tribunal a cessão não automática, na medida em que uma sociedade de direito estrangeiro no regime em vigor só pode ser assim considerada se tiver registado o seu projecto de investimento junto da instituição competente. O valor do investimento a ser declarado e transferido poderá, em nosso entender, ser o que a sociedade necessitará na fase inicial para honrar com as obrigações fruto da adjudicação que lhe foi feita por decisão judicial.
Importa realçar que um investidor privado, seja nacional ou estrangeiro, em relação ao qual esteja a decorrer um procedimento de recuperação judicial tem a obrigação legal de reportar à instituição que regista os projectos pois também lhe compete proceder a fiscalização e acompanhamento dos mesmos. Temos defendido que esta competência tem também o condão de apoiar os investidores privados na resolução dos problemas.
É claro que um processo de recuperação judicial é específico e um eventual apoio institucional seria mais no sentido de orientar o investidor a buscar encontrar e adoptar, rapidamente, soluções que provisória ou definitivamente não coloquem em causa o projecto de investimento, o que é bastante difícil.
Pelo que expusemos, não restam dúvidas da urgente necessidade que se existe de se aprovar um novo regime legal de falência, com o intuito de centrar-se mais na recuperação do falido e que possa regular situações específicas como as que expusemos no nosso caso de estudo.
Notas de rodapé:
(1) O diploma que define os procedimentos para o licenciamento e o registo da importação de capitais no âmbito da implementação dos projectos de investimento privado é o Aviso do Banco Nacional de Angola n.º 14/14, de 24 de Dezembro
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