Fiscalização das obras públicas tornou-se um negócio

Algumas empreitadas de obras públicas efectuadas ao longo dos últimos anos no país começam a apresentar sinais de degradação. O engenheiro de Construção Civil, António Venâncio disse que esta situação deve-se à má fiscalização e contratos pouco transparentes de empresas que tinham como objectivo apenas o enriquecimento ilícito. Entrevistado pelo Jornal de Angola, sublinhou que, em função disso, o Estado perdeu milhões de dólares e corre o risco de cometer os mesmos erros se não cumprir o que está estipulado na Lei dos Contratos Públicos.

Que avaliação faz da fiscalização das grandes empreitadas de obras públicas em Angola?

É negativa, uma vez que foram despendidas verbas muito volumosas para em-presas de fiscalização e os resultados finais, em muitos casos, foram sofríveis. Não temos feito uma fiscalização totalmente alinhada com aquilo que a Lei dos Contratos Públicos estabelece. Refiro-me à Lei 9/16 da As-sembleia Nacional. Viemos de um modelo de fiscalização mais aplicado às obras particulares, cuja ênfase recai sobretudo nas questões de ordem meramente técnica.

Em obras públicas isto não é suficiente para garantir a qualidade técnica expectável, pois estão em jogo interesses que só podem ser salvaguardados se a equi-pa de fiscalização designa-da pela entidade pública obedecer aos princípios e às regras previstos na Lei que rege esta actividade. A qualidade em empreitadas de obras públicas tem de ser antecedida de um conjunto de procedimentos, capazes de inibir o empreiteiro no cometimento de fraudes, ou de realizar trabalhos que não estejam em conformidade com as normas, com o caderno de encargos ou com o projecto aprovado.

Estes procedimentos têm a ver com a supervisão geral da empreitada que vela pelo cumprimento do contrato, com o plano de trabalhos e um caderno de encargos que contém cláusulas jurídicas, financeiras e técnicas próprias da formação de contratos de empreitadas, as quais abarcam outras questões que não são necessariamente técnicas, mas do fórum administrativo e legal, no qual se enquadram também penalidades ou punições, cauções, seguros ou as garantias de boa execução que devem ser asseguradas pela fiscalização.

Algumas obras de grande vulto nas quais o Estado investiu estão a apresentar sinais de degradação sem atingir o tempo útil de vida. O que aconteceu de facto?

São vários os factores que podemos inventariar sobre esta situação. Um deles é a inexistência de projectos bem elaborados por desrespeito aos estudos prévios, geralmente desprezados devido à excessiva pressa na apresentação de obra feita.

Quando a falta de projectos bem detalhados se associa à má fiscalização, a qualidade nunca é garantida. São, portanto, vários os factores que terão concorrido para o insucesso destas empreitadas. Mas, o que aqui quero referir é a fiscalização que não funcionou de facto. Aquilo foi mais uma oportunidade para alguns poucos escolhidos enriquecerem-se de forma ilícita. A fiscalização que se fez, e ainda se faz, no país deveria estar em conformidade com o estipulado na lei. Os empreiteiros de obras públicas são sempre responsáveis pelas deficiências de execução, que as devem corrigir às suas próprias expensas.

Mas não é isto o que acontece se o fiscal desconhece as técnicas próprias de como proceder.

Os erros ou vícios ocultos que aparecem nas obras depois de entregues, as deficiências que conduzem as obras públicas a uma ruína prematura, não se combatem só com o fornecimento de bons materiais ou melhoria dos processos de execução. As boas práticas do empreiteiro dependem muito dos procedimentos da fiscalização, quanto à persuasão, nível de rigor, grau de exigência e à eficácia da sua autoridade.

Quando uma estrada, por exemplo, não esgota o tempo de vida útil de projecto, que geralmente vai até 25 anos, e em dois ou três anos co-meça a apresentar buracos, que vão aumentando com o uso, naturalmente a culpa é da fiscalização, porque esta abandonou a empreitada antes de ela terminar de facto.

Muitos fiscais não sabem que a empreitada de uma obra pública só termina com a emissão de um auto de entrega definitiva e uma vez esgotado o período contratual de garantia. Vão mais cedo para a casa, permitindo roturas e degradações, que po-diam ter sido evitadas se actuassem nos marcos da lei, mas infelizmente, são muito raras as empresas de fiscalização que dominam as obrigações a que as leis lhes impõem no exercício da actividade de fiscalização.

Muitas dessas empresas não têm o “know-how” necessário e os fiscais à altura para realizar estes trabalhos. Porém, um fiscal profissional com domínio sobre a matéria agiria de outro modo, salvaguardando o interesse do Estado e responsabilizando o empreiteiro fazendo recurso aos instrumentos legais.

Com isto, o Estado evitaria enormes desperdícios financeiros com pagamentos duplicados para uma mesma obra. Raramente as empresas de fiscalização realizam inspecções periódicas e muito menos as vistorias técnicas, que visam evitar o pior junto do construtor e do dono da obra. Foi assim que as estradas de Angola, acabadas de reparar, foram à falência, vagarosa e silenciosamente.

O país conheceu outros exemplos como o do Hospital Geral e outros casos devido à fiscalização mal processada. O mesmo poderá ocorrer com alguns viadutos recentemente inaugurados, se os fiscais entenderem abandonar tais empreitadas que, nos termos da Lei, ainda não foram definitivamente entregues.

Os fiscais são obrigados a realizar aquilo que eu chamaria serviço-pós entrega. É aqui onde reside a grande diferença entre fiscalizar uma “obra” e fiscalizar uma “empreitada”.

Até agora ninguém foi responsabilizado ou penalizado?

Não, pelo que eu saiba, nunca houve penalizações ou responsabilização de empresas de fiscalização faltosas do seu dever. Grande parte das empresas de fiscalização era ou é detida por titulares de cargos públicos. Só agora as coisas começam a compor-se devido à nova actuação dos órgãos da Inspecção Geral do Estado.

Em matéria de fiscalização de empreitadas de obras públicas, o país tem boas leis, mas sabe fazer pouco. Para obrigar um empreiteiro ao cumprimento dos prazos contratuais estabelecidos, a fiscalização deverá calcular o DAI (Número de Dias de Atraso Injustificado) por via de uma fórmula existente na Lei.

Infelizmente, nem todos os fiscais sabem manejar esta fórmula, recorrendo a desculpas do tipo “o Estado não paga a tempo”. Por isso, não são capazes de aplicar multas. Isto é falso.

Está provado que mais de 90 por cento dos fiscais não sabe calcular multas. E isto não é matéria de universidades. É falta de formação profissional nesta área. O Estado já perdeu milhões de dólares por não cobrar multas previstas na Lei, por não responsabilizar empreiteiros em falta grave com a qualidade, por não responsabilizar as empresas de fiscalização negligentes. Pecou por não premiar o mérito daqueles empreiteiros que podiam ter dado o seu melhor, quer na apresentação de obras, quer nos ganhos significativos.

O Estado já perdeu milhões de dólares por não cobrar multas previstas na Lei. Por cada dia de atraso de uma obra pública injustificada a Lei prevê 0,1 por cento de multa. Por exemplo, numa obra de 10 milhões de dólares, o construtor paga por dia em atraso 10 mil dólares com incremento. Se os fiscais trabalhassem com base no que a Lei manda, o Estado ganharia, arrecadando receitas, e estimulávamos a competitividade e melhoria dos serviços na área da fiscalização e construção. Os empreiteiros teriam medo de falhar em termos de compromissos dos prazos. Como ninguém lhes diz nada, não são penalizados nem se preocupam.

Como são celebrados esses contratos?

Os contratos são celebrados com base em paradigmas mais ou menos iguais, variando apenas o preço da obra, os prazos, os endereços, etc. O resto é baseado na Lei dos Contratos Públicos. Contudo, o Estado actua de modo censurável no sentido de impor os trâmites da Lei das empreitadas, permitindo, por vezes, a promiscuidade, a improbidade e até o empolamento de preços.
No tocante à fiscalização, o Estado, em parceria com as ordens profissionais, tem de começar a exigir formação na área.

Mesmo com os resultados negativos que o Estado teve, ainda mantém contratos com empresas incumpridoras?

Isto é o que me admira. Vou dizer uma coisa. No passado, o Estado teve dificuldade em compreender e mandar cumprir a Lei que ele próprio aprovou. Repetimos os mesmos erros e ainda não ultrapassámos todas as causas destes erros, como por exemplo, o monopólio nos serviços de fiscalização das grandes empreitadas que sempre estiveram sob o controlo de um pequeno grupo de empresas privilegiadas.

Olhando para este canário, as empresas de fiscalização não cumprem a Lei?

Não digo taxativamente que violem propositadamente a Lei, mas estou seguro de que muitas delas simplesmente desconhecem a Lei. Trabalham de forma empírica, prejudicando financeiramente o Estado.

Muitas empresas de fiscalização em Angola são de capacidade duvidosa. O serviço que prestam representa apenas um percentual daquilo que deviam fazer.

A fiscalização tem de ser mais rigorosa e processada por quem domina a matéria. Temos de envolver mais nacionais, engenheiros, arquitectos e profissionais com formação na fiscalização de empreitadas de obras públicas.

Existe um certo monopólio na fiscalização de empreitadas

O engenheiro falou da existência de um certo “monopólio” na fiscalização de empreitadas de obras públicas no país…

Sim, há um certo monopólio, principalmente para obras financeiramente mais robustas, porque o processo de contratação das empresas de fiscalização não tem sido transparente. Vou dar um exemplo. Temos cinco em-presas que dominam o mercado de fiscalização no país, liderada pela DAR. Depois seguem-se a Soapro, Progest, BDM e GB.

A DAR está em quase tudo o que representa grandes contratos financeiros. Isto é visível a olho nu e a mim suscita al-guma apreensão. Só com uma investigação profunda nós chegaríamos à conclusão se, de facto, são contratos conquistados por mérito próprio ou não.

E onde está o mérito se o processo de fiscalização de empreitada tem muito a ver com procedimentos que a Lei determina?

Note que temos o Laboratório de Engenharia de Angola, que a Lei 9/16, de modo inequívoco, manda envolver no processo da fiscalização no país e nada é feito a este respeito. A DAR e demais empresas não estão a respeitar os preceitos contidos na Lei 9/16 relativamente a empreitadas de obras públicas. Só fazem controlo de qualidade e não a fiscalização de facto. Por isso, vemos hoje os resultados negativos dessas obras.

Temos instituições que ministram cursos de especialização em fiscalização?

Que eu saiba existem pelo menos dois centros com essa vocação. Um deles encontra-se sob minha coordenação técnica.

Tem conhecimento de alguma empresa que tenha participado num concurso público para fiscalização?

Eu quero ver no Jornal de Angola publicados editais a anunciar concursos públicos para a fiscalização de empreitadas de obras públicas. Vemos concursos para construção, mas para fiscalização é pouco comum. A fiscalização tornou-se num caminho para o enriquecimento ilícito de uma certa elite, pois não há concorrência.

Não deve haver adjudicação de serviços de fiscalização directamente, deve haver concursos públicos. A fiscalização virou um negócio para os membros da nomenclatura, desde ministros, governadores, vice-governadores, administradores e directores. Todos criaram empresas de fiscalização para o seu enriquecimento. Para eles, a fiscalização é, ou era, dar uma vistoria à obra, fazer o relatório e ponto final. Não é o que nós queremos para o país.

Qual é o papel do Laboratório de Engenharia de Angola (LEA)?

O Laboratório de Engenharia tem um papel importante no que diz respeito ao controlo de qualidade dos materiais e dos processos de certificação que vão dar à execução da obra. Os ma-teriais a aplicar em obras públicas, para serem submetidos a exame ou ensaios, devem ser apresentados ao LEA, tal como a Lei estabelece, ou, na impossibilidade deste, os laboratórios existentes devem ser previamente certificados pelo próprio LEA ou instituição apropriada. Mas não pode ser o laboratório do empreiteiro a aferir a qualidade dos materiais. Isto seria dar ao jogador o apito para arbitrar o jogo.

E os valores dos contratos da fiscalização das empreitadas de obras públicas estão em conformidade com a Lei?

A prática comum determina que deve ser cobrado, em média, 3 a 10 por cento do valor de uma obra, variando de forma inversamente proporcional ao valor dela. Quanto mais cara, menor é o valor da percentagem. Para obras pequenas, a percentagem é maior e pode ir até 8, 9 ou 10 por cento. Não mais do que isso.

Em Angola precisamos de regular isto, porque há quem no passado recente arrebatou 30 ou 40 por cento num exercício de verdadeira desonestidade, e aproveitando-se da desorganização no sector.

Publicação da autoria de Fonte Externa:
Jornal de Angola
28/01/2019

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