Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – O capital social e a sua (ir) relevância. O caso da “Teslstar, Lda.”

Há poucos dias, verificamos uma onda de críticas em torno do facto da empresa “Telstar, Lda.” ter sido anunciada como a vencedora do Concurso Público Internacional com vista à celebração do Contrato de Concessão de Serviço Público de Comunicações Electrónicas para a atribuição de um Título Global Unificado para o quarto Operador Global no sector das Telecomunicações. Entretanto, o concurso veio a ser anulado pelo Titular do Poder Executivo em virtude da citada empresa, como sugere o Despacho de anulação, não ter cumprido com todas as exigências do concurso.

Entre as várias críticas, mereceu destaque o facto da aludida sociedade comercial apenas ter, conforme foi amplamente difundido, um capital social de 200.000, 00 Kz, o que nos parece, como cultores do Direito Comercial, especialmente, relevante apreciar. Reforça este nosso interesse o facto de, no Direito angolano, não vigorar, como regime regra, qualquer exigência de capital social para as sociedades comerciais por quotas. É o que resulta do art.º 6 .º/1 da Lei nº 11/15, de 17 de Junho – Da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais.

Mas, não foi sempre assim. Antes da entrada em vigor do citado diploma, vigorava o disposto no art.º 221 da Lei das Sociedades Comerciais (adiante designado, por abreviação, “LSC”) que fixava o equivalente a 1000, 00 USD, correspondente em kwanzas, como sendo o capital social mínimo para as referidas sociedades. Refira-se que a sua fixação é um elemento essencial do Contrato de Sociedade, como resulta da al. f) do art.º 10 .º/1 da LSC.

Se em algum momento tal solução se justificava, o certo é que a necessidade de se desformalizar os procedimentos atinentes à constituição de sociedades e, consequentemente, a criação de um melhor ambiente de negócios, demonstrava que aquela exigência deveria ser eliminada.

Tarso Domingues (1), conhecido autor português e que aborda sobre o problema do capital social livre nas sociedades por quotas à luz do Direito português (em que vigora um regime semelhante ao previsto no Direito angolano), apoiando-se na posição de vários autores da Europa continental, desvaloriza a tradicional imposição de um capital social mínimo. De acordo com o citado autor o capital social não se afigura como necessário para garantir os credores da sociedade por não ser eficaz nem satisfatório.

Para além desta função, entendida como de garantia, tem sido também atribuída ao capital social uma função de financiamento. Através da mesma, entende-se que o capital social tem como finalidade a organização de meios necessários para desenvolver as actividades que a sociedade se propõe.

Entretanto, também, a função de financiamento está em crise, porquanto é difícil, pelo menos genericamente, definir ou fixar um capital social que seja adequado ao objecto social.

Na história do Direito angolano, já vigorou, em sede do investimento privado, um regime através do qual se determinava a adequação do capital social ao objecto do projecto (2). O art.º 76 .º/4 da Lei n.º 20/11, de 20 de Maio impunha às sociedades que viessem a ser constituídas ao abrigo do aludido regime o dever de realizarem um capital social que fosse proporcional ao valor do investimento, sendo que o não cumprimento deste dever poderia resultar na revogação do Certificado de Registo de Investimento Privado (CRIP) e resolução do Contrato de Investimento.

A referida Lei foi revogada pela Lei n.º 14/15, de 11 de Agosto. Este diploma, que remetia a matéria para o regime geral aplicável a todas às sociedades comerciais, foi revogado pela Lei n.º 11/18, de 26 de Junho (em vigor actualmente), que continua – em nosso entender – a guiar-se pelo mesmo regime em virtude de não prever qualquer norma a respeito.

Atentos ao que expusemos, parece-nos, então importante, questionar se no caso da “Telstar” o capital social seria suficiente para desenvolver a actividade que propõe. Sem dúvidas que a resposta é negativa.

Mas, deve aludir-se que a Lei n.º 23/11, de 20 de Junho, que rege as comunicações electrónicas e os serviços da sociedade de informação, não fixa qualquer capital social mínimo para as sociedades que decidam desenvolver actividades que sejam regidas pela citada Lei. Não é, por exemplo, o que sucede com as instituições financeiras em que é exigido, nos termos da legislação que se lhes aplica, um capital social mínimo.

O art.º 41 da Lei n.º 23/11, de 20 de Junho consagra o princípio da liberalização do sector das comunicações electrónicas que só admite condicionalismos, como resulta do n.º 2 do mesmo artigo, por “(…) limitações respeitantes a recursos escassos (…) a definir em diploma próprio do Titular do Poder Executivo (…). Compulsada a legislação aplicável, ao sector em análise, não vislumbramos qualquer diploma limitativo.

Entretanto e salvo um melhor entendimento, nada obsta que para a candidatura em determinado concurso público, no sector das telecomunicações, seja fixado, em sede do Regulamento em concreto, como um dos requisitos que os candidatos devem reunir um capital social mínimo, sendo que a sua não fixação é factor de eliminação.

No caso do concurso que temos vindo a nos debruçar, desconhecemos a existência de qualquer exigência no que tange ao capital social. Ainda assim, não nos parece, pelo menos do ponto de vista jurídico, que os candidatos tivessem quaisquer problemas em proceder o aumento de capital social, face ao valor do Contrato, em virtude de tal ser admissível nos termos da LSC.

Pelo exposto, não restam dúvidas de que, efectivamente, as funções e a importância do capital social estão em falência. Contudo, o capital social, mesmo não sendo determinante, ainda continua a ser importante na transmissão de alguma confiança.

Moses Caiaia – Especialista em Ciências Jurídico-Empresariais e Pós-Graduado em Corporate Finance e Corporate Governance

Notas de Rodapé (NR)

(1) DOMINGUES, PAULO DE TARSO, O novo regime jurídico do capital social das sociedades por quotas, in Capital Social Livre e Acções sem Valor Nominal (coord. Paulo de Tarso Domingues e Maria Miguel Carvalho), Almedina, Coimbra, 11ª ed., 2011, pp. 9-27

(2) Para maiores desenvolvimentos, embora se referindo à Lei n.º 14/15, de 11 de Agosto, a anterior Lei do Investimento Privado, Vd. MOSES CAIAIA, “Sobre um regime especial de capital social para as sociedades por quotas constituídas ao abrigo do investimento privado em Angola”, Luanda, 2017, disponível em https://correiokianda.info/investimento-privado-angola-regime-especial-capital-social-as-sociedades-quotas/ (consultado em 20 de Abril de 2019).

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