Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – O relacionamento entre os órgãos sociais das empresas públicas angolanas e os restantes stakeholders

O Sector Empresarial Público, também conhecido por “SEP”, integra, de acordo com o art.º 1 da Lei n.º 11/13, de 3 de Setembro – Do Sector Empresarial Público (adiante designada por abreviação “LSEP”),  as empresas públicas, as empresas com domínio público e as participações públicas minoritárias.

Um tema actual no âmbito da corporate governance [1],atinente às empresas públicas em Angola, prende-se com o relacionamento entre os seus órgãos sociais e restantes stakelhoders, nomeadamente, o Estado (que é accionista), os utilizadores dos bens e serviços, os trabalhadores, os credores e, de um modo geral, os cidadãos. Nos últimos tempos têm sido várias as reclamações e greves de trabalhadores das citadas empresas, por falta de condições de índole laboral (com destaque para as questões salariais), assim como reclamações de utilizadores, por falta de qualidade, dos serviços e bens que são prestados pelas mesmas empresas. A estes argumentos juntam-se os fundamentos das medidas que veem sendo tomadas pelo Executivo em relação à reestruturação de algumas empresas, bem como o programa de privatizações em curso.

Para além da relevância que o tema assume para outras áreas, no âmbito do Direito das Sociedades assume uma importância maior, na medida em que apesar de prosseguirem o interesse público, que é uma questão controvertida que e merecerá à nossa atenção mais adiante, têm uma natureza jurídica privada. Neste sentido, aplica-se aos órgãos de administração o dever de diligência previsto no art.º 69 da Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro – Das Sociedades Comerciais.

Dispõe o citado artigo que “os administradores de uma sociedade devem actuar no interesse desta (…) sem prejuízo dos interesses sócios e dos trabalhadores”.

Este dever é reforçado pelo Estatuto dos membros dos órgãos de gestão e fiscalização das empresas públicas e das empresas de domínio público,  aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 15/17, de 2 de Fevereiro, que no n.º 3 do art.º 5 impõe ao Gestor Empresarial Público, na sua actuação, a “(…) liderar e motivar os trabalhadores no sentido de, sucessivamente, melhorar a produtividade e consequentemente os resultados e a qualidade dos bens e serviços da respectiva empresa”.

Embora a LSEP apenas faça referência aos órgãos de gestão e órgãos de fiscalização, não consagrando expressamente os órgãos sociais das empresas públicas, deixando a regulação desta matéria aos respectivos diplomas que as criam, a prática nos permite identificar que normalmente são: o conselho de administração e o conselho fiscal.

Salvo um melhor entendimento, o fraco relacionamento entre os citados órgãos e os restantes stakeholders, deve-se, entre outros razões, pela não aplicação de forma plena e exitosa das regras de boa gestão, que, grosso modo, fundam o Sector Empresarial Público assim como pelo não atendimento dos fundamentos específicos que levam à criação de determinada empresa pública e dos objectivos que são fixados em relação à mesma. Como escreve LIA OLEMA CORREIA, “por boa administração deve entender-se: administração economicamente eficiente e sustentável e socialmente justa, obter os melhores resultados ao menor custo social e os objectivos alcançados corresponderem à utilidade social desejada pelo cidadão eleitor [2].

Note-se que, como já tivemos a oportunidade de referir, apesar de adoptarem o modelo empresarial privado, as empresas públicas prosseguem um interesse público. É verdade que, também, neste âmbito se levanta a discussão de saber o que será o interesse público. Sem queremos expor toda a discussão a volta deste tema, por não ser o objecto do presente trabalho, parece-nos que, nesta sede, o interesse público pode ser resumido na redução de custos dos bens e serviços para os contribuintes.

Os problemas que a maior parte das empresas públicas angolanas apresentam são antigos, porém,  entendemos que a elevada influência política na indicação dos gestores em detrimento da capacidade de concretização dos objectivos encobriu-os. Tal influência aliada à falta de controlo, pelos órgãos competentes e de supervisão [3], em relação à aplicação das regras de gestão eficaz e prudente, levaram vários gestores empresariais públicos a retirarem grandes benefícios em prejuízo do Estado e dos demais stakeholders.

Mesmo sendo uma matéria limitada por lei [4],  os órgãos de gestão de várias empresas públicas fizeram aprovar procedimentos internos, em muitos casos integrados em regulamentos, definindo um estatuto remuneratório que apenas lhes beneficiasse e que tornasse, ao nível da governação das empresas, a democracia insuficiente e ineficiente. Iremos, em próximos artigos, discorrer afloradamente sobre ambas as questões.

Chegados aqui, resta-nos advogar que se continue a executar o programa de privatizações em curso, que se atendam os critérios definidos por lei para a nomeação dos gestores empresariais públicos (“diminuindo-se” a relevância da influência política que, se diga, não é um dos critérios previsto na lei), que haja maior rigor no controlo da legalidade dos actos praticados pelas empresas públicas e responsabilização, quando assim deve ser, dos gestores que não cumprem as regras definidas com vista a uma boa gestão e que obsta o cumprimento dos contratos-programas.

Notas de rodapé:

[1]  Traduzido, para português, como “Governação corporativa”, a “corporate governance” consiste no sistema através do qual as sociedades são geridas e controladas” (cf. Jin Forum, Report f the Commitee on the Financial Aspects of Corporate Governance (The Cadbury Report), 1992, p. 15. Disponível em http://www.ecgi.org/ codes/documents/cadbury.pdf (consultado pela última vez a 24.05.2019)

[2]  LIA OLEMA CORREIA, O dever de boa gestão e a responsabilidade financeira, in “Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, vol. II, pp. 792 e 796

[3]  Para além do controlo interno que é levado a cabo por órgãos próprios das empresas públicas, há também um controlo externo. Este é levado a cabo, num plano político, pela Assembleia Nacional. Há, igualmente, um plano técnico e um plano jurisdicional, que competem ao Tribunal de Contas.

[4]  O Estatuto remuneratório dos membros do órgão de gestão e de fiscalização das empresas públicas e das empresas de domínio público foi aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 16/17, de 2 de Fevereiro

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