Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – Sobre a aplicação subsidiária da Lei do Investimento Privado em relação ao Código Mineiro

Nota prévia: Sempre que a indicação legal não revele a fonte, trata-se de um artigo do Código Mineiro (a seguir designado somente por “CM”).

Através do presente artigo, pretendemos reflectir em torno da aplicação subsidiária da Lei n.º 10/18, de 26 de Junho – Do Investimento Privado (adiante designada por abreviação “LIP) à actividade mineira como resultado do previsto no n.º 3 do art. 108 da Lei n.º 31/11, de 23 de Setembro – que aprova o CM. A referida norma, e as que lhe seguem, consagram o regime jurídico de investimento privado no sector em análise.

De forma complementar, o n.º 3 do art.º 2 da LIP exclui do seu âmbito de aplicação àqueles sectores de actividade, como é o caso da actividade mineira, cujo regime de investimento é regulado por lei especial. Não obstante, o Regulamento do citado diploma legal, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 250/18, de 30 de Outubro determina, no n.º 2 do art.º 2, que os projectos aprovados por tais leis, especiais, devem ser registados de forma gratuita pela Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações (legalmente designada “AIPEX”, por abreviação), outorgando o Certificado de Registo de Investimento Privado (CRIP) para efeitos de controlo estatístico e de atribuição do estatuto de investidor privado.

O interesse pelo estudo da relação que se estabelece entre o CM e a LIP, especificamente em relação aquelas questões em que é mais evidente o potencial ponto de contacto, que é a perspectiva sobre a qual nos iremos cingir, prende-se com o facto de na prática puderem surgirem problemas de ordem procedimental e operacional, que não estão devidamente regulamentados quer num quer no outro diploma, e com efeito, colocarem em causa a estabilidade das relações que se estabelecem entre o Estado e investidor privado.

Recorrendo à história, importa frisar, a título de consideração geral, que a actividade mineira, tal como outras que já tivemos a oportunidade de comentar em outros artigos, sempre foi objecto de regulação especial. Na senda da necessária adequação da actividade em causa ao modelo económico e social vigente a partir de 2010, com a aprovação da Constituição da República de Angola, em vigor, foi aprovado o CM.

Na altura, o regime geral do investimento privado regia-se pela Lei n.º 20/11, de 20 de Maio. Este diploma previa, unicamente, um regime contratual.

Apesar de serem poucas, havia algumas semelhanças entre o regime de negociação dos contratos para a objectivação investimento privado e regime de negociação com vista a concessão de direitos mineiros.

Com o passar do tempo e fruto da situação económica, social e política, o sistema geral de investimento privado veio a registar várias alterações, sendo que a actual LIP, que é uma evidência de tais alterações, não prevê qualquer regime contratual.

Entretanto, o CM não sofreu, até aqui, quaisquer alterações e disso resulta que a aplicação subsidiária da actual LIP ao regime previsto naquele diploma nem sempre se mostra adequada. Comecemos, então, por analisar alguns dos principais aspectos da estrutura de negociação e pós-negociação.

O regime jurídico do investimento privado no sector em análise vem previsto no art.º 108 e seguintes do CM. Por não ser o objecto do nosso estudo e até de economia do tempo, não nos iremos cingir pormenorizadamente.

O CM consagra procedimentos diferenciados para aos direitos mineiros de prospecção em relação aos direitos mineiros de exploração.  O acesso aos direitos mineiros resulta da verificação de um conjunto de regras e procedimentos que devem culminar com a celebração do Contrato de Investimento Mineiro a ser celebrado entre o Estado[1] e o Investidor Privado. Segue-se a emissão do título mineiro de prospecção.

Por meio do art.º 126, acomete-se ao órgão responsável pela aprovação do Contrato Mineiro a responsabilidade de comunicar à AIPEX a fim de que esta instituicão proceda ao registo sobre o qual já nos referimos supra.

O CM também obriga que à remessa do processo ao Banco Nacional de Angola, por formas a viabilizar-se a importação de capitais, isto se implicar transferência de fundos do exterior. Com a entrada em vigor do Aviso n.º 15/2019, de 30 de Dezembro afasta-se tal obrigatoriedade, aliás, o diploma que este Aviso veio revogar já prévia um procedimento de licenciamento diferente em relação que vigorava ao tempo da aprovação do CM.

Um procedimento similar, em relação ao exposto quanto ao acesso aos direitos mineiros, verifica-se no que concerne ao título de exploração mineira, cujo regime vem vertido nos art.º 134 e seguintes do CM.

Surge aqui a questão de saber se, em face do facto da LIP não prever qualquer valor mínimo para o investimento privado e ser aplicável aos investidores estrangeiros ou nacionais, a estes últimos também se impõe o dever de registo. Salvo um melhor entendimento, parece-nos que a resposta é afirmativa caso pretendam gozar, com as adaptações que se impõem, do estatuto de investidor privado ao abrigo da LIP. Na verdade, esta solução, que nós discordamos por não vermos qualquer relevância práctica, tem sido já apontada mesmo em relação aos projectos que não obedecem a um regime especial de aprovação e que, igualmente, têm como promotores investidores nacionais.

Sublinhe-se que apesar da exigência de emissão do CRIP e de ser difícil conjecturar, por exemplo, divergências entre o mesmo e o título de prospecção, se houver as condições e termos a que fica sujeito o titular são as que constam neste último documento.

Cingindo-nos, especificamente, sobre o conteúdo do estatuto de investidor que, como já referimos, cujo gozo inicia com a atribuição do CRIP, importa sublinhar que dele fazem parte um conjunto de direitos e obrigações que podem variar consoante a natureza e o tipo de projecto. No caso dos investidores privados do sector mineiro o conteúdo é mais lato dadas as especificidades do regime principal que se lhes aplica.

Para além de outros, com a atribuição do estatuto de investidor privado externo, de acordo com a LIP, o mesmo tem o direito a repatriar lucros e dividendos e um regime migratório diferenciado. Quanto às facilidades e benefícios fiscais, parece-nos não ser aplicável o regime da LIP, na medida em que o CM prevê, a partir do art.º 228, um regime próprio para os projectos de investimento regulados ao abrigo do citado diploma. O mesmo sucede em relação ao regime aduaneiro.

A tramitação do processo de investimento mineiro também obedece as regras previstas na LIP e legislação complementar naqueles casos em que não há disposição contrária no CM, legislação específica e no Contrato de Investimento. Esta solução normativa, prevista no art.º 157, é mais uma evidência da natureza subsidiária da LIP em relação ao CM.

Não obstante com o devido respeito por quem tem um entendimento diferente, pensamos que o n.º 2, do aludido artigo, potencia a sobreposição de normas e, no limite, um conflito de competências. A citada norma atribui ao órgão de tutela, no caso o departamento ministerial que aprova os projectos, a responsabilidade de fiscalizar os prazos para a realização do investimento.

Ora, o nosso entendimento funda-se no facto de o art.º 16 do Regulamento de acometer à AIPEX a responsabilidade de fiscalizar e acompanhar os projectos que regista. Apesar da mesma norma prever a faculdade de quer a fiscalização quer o acompanhamento puderem ser exercidas conjuntamente, no plano prático são vários os problemas que se colocam. Primeiro porque há transgressões que são passíveis de serem sancionadas quer ao abrigo da LIP quer ao abrigo do CM, como é o caso da não execução do investimento privado, e, segundo, porque não um mecanismo legal que soluciona em que termos cada orgão intervem nestas situações.

Posto isto, coloca-se a questão de saber como resolver estas situações. Parece-nos que a solução deverá passar por se fixar na Lei, admitindo-se uma futura revisão legislativa, as incidências do registo, ao abrigo do regime geral aplicável ao investimento privado, dos projectos sobre o qual nos debruçamos, bem como o modo de intervenção dos vários orgãos em todos os processos e procedimentos.

Notas de Rodapé

[1] No nosso livro CAIAIA, Moses, Investimento Privado no Direito AngolanoIntrodução e Comentários à Lei n.º 10/18, de 26 de Junho (Lei do Investimento Privado), Ponto de Vista, Lda., Luanda, 2019, p. 29,  escrevemos que “Durante vários anos, o exercício de qualquer actividade que se enquadra no objecto que referimos só podia ser levado a cabo em associação com o Estado. No caso, através da Empresa Nacional de Prospecção, Exploração, Lapidação e Comercializaço de Diamantes de Angola (conhecida abreviadamente por “ENDIAMA – E.P”). A referida empresa tinha que ter uma posição dominante. Esta posição, implicava que lhe competia ditar as regras dos contratos que viessem a ser celebrados. Entretanto, através do DP n.º 12/18, de 15 de Janeiro, publicado no DR, I Série – n.º 6, foi aprovado um novo Estatuto Orgânico do Ministério dos Recursos Naturais e Petróleos. O mesmo prevê a existência da Agência Nacional de Recursos Minerais (ANRM), instituição a quem passará a competir – em substituição da ENDIAMA E.P – assegurar as concessões no domínio dos recursos minerais.”

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