Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – A violação do Direito sobre a marca[1] no ordenamento jurídico angolano. O caso referente à nova marca[2] do Governo

Nota prévia: Sempre que a indicação legal não revele a fonte, trata-se de um artigo da Lei da Propriedade Industrial (a seguir designado somente por “LPI”).

A apresentação, recentemente, da marca do Governo angolano originou um conjunto de críticas por parte de juristas, publicitários, especialistas em marketing e até leigos sobre a matéria. A principal crítica, segundo o que pudemos perceber, assenta no facto de supostamente existir uma empresa de direito estrangeiro com uma marca semelhante a que foi apresentada.

Sem prejuízo da análise do tema de acordo com outras áreas do saber, parece-nos importante analisar, supondo que efectivamente já exista, as implicações do problema para o Direito angolano.

Como ponto prévio, gostaríamos de considerar que o regime jurídico da marca vem vertido na Lei n. º 3/92, de 28 de Fevereiro – Da Propriedade Industrial (adiante designada por abreviação “LPI”) e os pedidos de registo decorrem no Instituto Angolano da Propriedade Industrial (também conhecido por “IAPI). Também gostaríamos de aclarar que o presente artigo não esgota toda a abordagem que pode ser feita em torno do tema.

A questão que queremos responder é: à luz do Direito angolano é possível proceder ao registo de uma marca junto do IAPI que já tenha sido registada num outro país?

A análise do problema deve, em nosso entender, ser feita tendo em conta dois planos: o do direito interno e o do direito internacional que se aplica à Angola. Para sermos mais claros iremos debruçar-nos, individualmente, sobre a perspectiva tendo em conta cada um dos planos e no fim, como deve ser, iremos apresentar a nossa conclusão.

Ora, no plano interno, como já frisamos, merece destaque a LPI. De acordo com o art.º 29 “Todo aquele que adoptar uma marca para distinguir os produtos da sua actividade económica, gozará da propriedade e do exclusivo dela desde que registada de conformidade com o estipulado nesta lei.”

O art. º 30 elenca a quem cabe o uso de uma marca colectiva. No caso do governo, com respeito por quem tem um entendimento diferente, parece-nos que o direito sobre a marca sobre o qual nos temos debruçado, tem cobertura na al. f) ao referir-se sobre as entidades que pretendem distinguir as suas actividades.

No que toca à constituição, de acordo com o art. º 31, “a marca pode ser constituída por sinais ou conjunto de sinais visíveis, nominativos, figurativos ou problemáticos, quer permitam distinguir os produtos ou serviços de uma empresa de outros idênticos ou semelhantes”.

Desta norma facilmente se consegue perceber a relevância que o Direito atribui a uma marca. No caso, aquela se tiver sido registada, porquanto na nossa ordem jurídica, como se pode inferir do regime jurídico da marca, o direito sobre a mesma só se adquire se a mesma tiver sido registada.

Com efeito, é atribuído um direito privativo sobre a marca com o intuito de garantir a lealdade da concorrência, sendo este desígnio a função do Direito da Propriedade Industrial (ramo do Direito que estuda a marca, para além de outros sinais distintivos, patentes de invenção e concorrência desleal). Apesar da protecção que aqui fala, aplicar-se mais às empresas, porque elas é que se colocam num mercado e, por isso, numa situação de concorrência, parece-nos que também os governos podem ser “vítimas da deslealdade”.

Pense-se por exemplo, na realização de uma campanha publicitária com a marca do governo associada, sem qualquer autorização deste por por um órgão que dele faça parte. Pode levar as pessoas a pensarem que por ter a intervenção do governo é algo sério e, por isso, ser geradora de confiança. Não é difícil imaginar as vantagens que podem resultar para quem assim procede ou as desvantagens para o governo.

De acordo com a doutrina maioritária, a violação do direito sobre a marca pode ser directa, nos casos em que é afectada a sua função de distinguir a origem de produtos ou serviços, ou indirecta, quando a mesma função não é afectada, mas ainda assim resulta em prejuízos económicos.

O primeiro tipo de violação, refere-se às situações que põem em causa o valor económico da marca, afectando-a negativamente, e que resultam da actuação de terceiros. Já no segundo tipo de situações, cabem aquelas que podem pôr em causa a diluição da marca, sendo que a mesma passa a ser vulnerabilizada, o que afasta o seu carácter distintivo.

Portanto, pensamos que para o caso da marca do governo, também se visa, com as adaptações necessárias, garantir alguma lealdade, ou seja, a adopção de práticas honestas.

Dito isto, poderíamos considerar que se o governo tiver registado a sua marca junto do IAPI, seguindo o procedimento legal para o registo da marca e cumpridas todas as fases que aquela instituição discricionariamente determina, não se colocaria aqui qualquer problema mesmo que a marca já esteja registada num outro país. No entanto, para além das questões éticas – ainda mais por ser o governo o titular da marca –  há que considerar o segundo plano de abordagem do nosso tema.

Mas, não podemos passar para este plano, sem sublinhar que não é necessário, para se falar em violação do direito sobre a marca, que uma seja igual à outra. Basta que se confundam!

Oliveira Ascensão[3], renomado autor português, aborda o tema sobre a confusão e a imitação no âmbito da lesão dos interesses de empresas concorrentes. De acordo com o citado autor, há um nível de confundibilidade, que é socialmente adequado e “a grande directriz que encontrámos nesse domínio não foi a do repúdio da cópia ou da imitação, mas reacção contra o risco de confusão”. Parece-nos ser um entendimento que também vale para o caso em estudo.

Posto isso, podemos então iniciar a abordagem tendo em atenção a perspectiva do Direito Internacional. Neste sentido, refira-se que, apesar de a LPI não incorporar várias normas com fonte no aludido Direito, o que deve ser urgentemente revisto, Angola é membro da Organização Mundial Propriedade Intelectual (OMPI)[4] e ractificou importantes acordos internacionais, como são os casos da Convenção de Paris para a protecção da Propriedade Industrial (CUP)[5] e o Tratado de Cooperação em matéria de patentes (PCT)[6].

Resultam obrigações a partir de tais acordos, merecendo especial destaque as que veem previstas na CUP. Esta convenção, que foi assinada em 1883, constitui o primeiro acordo internacional relativo à Propriedade Industrial e surgiu pela necessidade de facilitar a protecção de activos de propriedade industrial dos seus membros.

O que nos interessa, no presente estudo, é olhar para o sistema CUP referente ao registo de marcas em outros países. Ora, o mesmo permite a extensão da prioridade do registro de uma marca registada em Angola (considerado-o aqui como o país de origem) para outros países, ou seja, qualquer marca regularmente registrada no país de origem será admitida para registro e protegida na sua forma original nos outros países que ractificaram a CUP.

Há um período, de 6 meses (180 dias), que se abre, a seguir ao pedido de registo da marca no país de origem, para o interessado solicitar o pedido de registo com prioridade do país de origem nos países que fazem parte do sistema CUP.

Desta forma, é possível  ter uma marca depositada em outro país fazendo-se do direito de precedência do depósito da marca do país de origem.

Em face disso e se supormos que o titular da marca que se alude ter visto o seu direito violado, aderiu o sistema CUP para o registo de marca no seu país de origem seguindo todos os passos supra, o IAPI não pode aceitar o pedido de registo do governo de Angola.

Notas de Rodapé:

[1] A maior parte dos autores opta pela expressão “direito à marca” ao em vez de “direito sobre a marca”. Há ainda quem opta pela expressão “direito de marca”, como é, por exemplo, o caso de GONÇALVES, LUÍS COUTO, Manual de Direito Industrial – Propriedade industrial e concorrência desleal, 6ª ed., Almedina, 2015, 175. Nós preferimos a expressão “direito sobre a marca” porque, como bem justifica, MARQUES, ANDRÉ SOUSA, Da Aquisição Originária do Direito sobre a Marca, Almedina, 2014, P. 15, nota 1, “(..) o vocábulo ‘marca’ no contexto em que é usado, designa precisamente o objecto do direito (…)”.

[2] O legislador angolano opta por considerar “marca” o que outras áreas, como o Marketing, chamam por logomarca.

[3] Cfr. ASCENSÃO, OLIVEIRA, Concorrência desleal, Almedina, 2002, p. 422-423, trata do tema tendo em conta o disposto no art.º 260.º a) do revogado CPI português de 1995 que, tal como o § 1º do Código de 1940 considerava que a concorrência desleal se manifesta “qualquer que seja o meio empregue”

[4] Aprovada pela Resolução nº 9/84, de 20 de Julho;

[5] Aprovado pela Resolução n.º 22/05, de 19 de Agosto;

[6] Aprovado pela Resolução n.º 22/05, de 19 de Agosto.

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