Specialist AO – Dr. Moses Caiaia – Nótulas sobre a reforma do Direito da Propriedade Industrial em Angola

Através do Decreto Presidencial n. º 62/20, de 4 de Março, foi aprovado o novo regime de taxas no domínio da Propriedade Industrial. Este diploma, que revoga o Decreto Executivo n. º 21/97, de 9 de Maio, surge – como resulta do preâmbulo – pela necessidade de serem cobertos os encargos respeitantes aos meios humanos e materiais utilizados para efeito de concessão de direitos da propriedade industrial.

Há, claramente, com a aprovação do novo regime de taxas um sinal de que começa a haver por parte do Executivo alguma preocupação em relação à propriedade industrial. Entretanto, parece-nos que, com o devido respeito por quem tem um entendimento diferente, se tal aprovação é um sinal da reforma que está prestes a iniciar, faria mais sentido que primeiro se procedesse à aprovação da nova Lei da Propriedade Industrial cujas discussões públicas já duram há mais de quatro anos.

Identificamos três perspectivas para fundamentar, de forma resumida, a nossa tese. São as seguintes: (i) o desajustamento da Lei actual face ao modelo social vigente, (ii) a adequação que se exige entre o direito interno ao direito internacional aplicável à matéria, assim como (iii) a imperiosa necessidade de modernizar o Instituto Angolano da Propriedade Industrial (adiante designado por IAPI), enquanto órgão gestor da propriedade industrial.

  1. Sobre o desajustamento da LPI actual face ao modelo social vigente

A Lei n. º 3/92, de 28 de Fevereiro – Da Propriedade Industrial (adiante designada por abreviação “LPI”) vigora há vinte e oitos anos.  Foi aprovada num contexto em que foram operadas várias alterações do ponto de visto político, económico e social.

Neste sentido, merecem destaque as mudanças de sistema político e económico, de monopartidarismo para multipartidarismo e de economia planificada para de mercado, respectivamente. Não obstante, a LPI continuou, em nosso entender, a conservar laivos de uma economia planificada.

Ora, se naquela altura tal se justificava, actualmente não nos parece fazer qualquer sentido, porquanto actualmente a protecção da propriedade industrial tem como desígnio garantir a lealdade da concorrência, favorecendo assim o desenvolvimento da riqueza. Isto faz-se, através da atribuição de direitos privativos em relação às patentes de invenção, os modelos de utilidade, os modelos e desenhos industriais, as marcas de fabrico, de comércio e de serviços, as recompensas, o nome e insígnia do estabelecimento e as indicações de proveniência.

Excluímos a a repressão da concorrência desleal, pois apesar de constar no art. º 2 da LPI, com os outros elementos já citados, tal referência tem sido objecto de críticas. Na doutrina portuguesa, onde a discussão também se tem levantado, são vários os autores que propugnam tal exclusão.

Um destes autores é Miguel Pupo Correira. De acordo com o mesmo, que compara aalteração do Código de Propriedade Industrial português de 1995 – que tinha uma norma semelhante a da nossa LPI em vigor em Angola – em relação ao de 2003, escreve que “(…) bem andou o legislador   em suprimir a expressão “bem como a repressão da concorrência desleal”, na medida em que “ (…) incutia a ideia errónea de que o instituto da concorrência desleal faria parte do âmbito da propriedade industrial” [1].  Sustenta, o mesmo autor, que “(…) a propriedade industrial tem um âmbito específico, referente ao conteúdo dos vários bens – criações novas e sinais distintivos – que tipifica e protege, em ordem à protecção dos interesses das empresas associadas a cada um deles (…). Ao passo que a concorrência desleal é um instituto diverso, de conteúdo diverso e mais vasto, além de mais exigente nos seus requisitos, destinado à preservação da ética comercial (…)”[2].

Esta visão do autor, que sufragamos e bem pode ser aproveitada para a nossa realidade, evidência e o novo paradigma que deve ser a propriedade industrial. Com as reformas que se verificam no domínio económico, com vista à criação de uma verdadeira economia de mercado, urge a necessidade de se conferir maior protecção aos interesses das empresas.

Se não assim acontecer, julgamos que tal protecção não será atingida. Pensemos, por exemplo, no impacto negativo que a falta dela representa para os investidores estrangeiros. Apesar de a Lei do Investimento Privado vigente referir-se sobre a possibilidade de poder investir por via da propriedade industrial é necessário que tal possibilidade encontre amparo em toda a ordem jurídica, a começar pelo regime específico aplicável à propriedade industrial. 

  1. Sobre a adequação que se exige do direito interno ao direito internacional aplicável à propriedade industrial

Reforça o nosso entendimento, segundo o qual a reforma deveria iniciar-se com a aprovação de uma nova Lei, o facto de Angola ser, como já demos nota num outro artigo que publicamos[3], membro da Organização Mundial Propriedade Intelectual (OMPI)[4] e da Organização Mundial do Comércio (o que tem como consequência a vinculação ao Acordo TRIPS)[5] e de ter ractificado importantes acordos internacionais, como são os casos da Convenção de Paris para a protecção da Propriedade Industrial (CUP)[6] e o Tratado de Cooperação em matéria de patentes (PCT)[7]. É, assim, mister que o direito interno aplicável à propriedade industrial seja adequado ao direito internacional.

Neste sentido, incluímos também os compromissos que resultam dos acordos das organizações económicas de que Angola faz parte. Neste sentido, refira-se que a materialização de uma zona de comércio livre a nível da África Austral, entre os países que integram a SADC, só será possível se existir – entre outras condições – uma aproximação das legislações dos Estados-membros e os órgãos gestores da propriedade industrial. Claro que temos ciência de que isto é difícil porque os países têm níveis de desenvolvimento e prioridades diferentes, mas, algum esforço deve ser feito no sentido de alcançar tal aproximação.

Uma nova Lei, mais moderna, poderá assim constituir um elemento normativo e administrativo que permitirá uma protecção – nos termos já referidos – alargada, simultânea, expedita e eficaz. Por exemplo, o processo de registo de uma marca estrangeira a decorrer junto do IAPI, deverá, numa perspectiva de iure condendo, estar previsto na citada Lei e em conformidade com as disposições da Convenção de Paris a respeito.

  1. A modernização do IAPI

Propugnamos que após a aprovação da Lei deveria, salvo melhor opinião, priorizar-se a modernização do IAPI, evitando-se que a citada instituição continuasse a fazer recurso – como sucede até o momento – a métodos arcaicos e que não abonam a favor da celeridade dos processos que lhe são submetidos. Apesar de o Decreto Presidencial n. º 62/20, de 4 de Março afectar 75% dos valores que vierem a ser arrecadados, pelo citado instituto, corresponderem à dotação orçamental que a ser atribuída ao mesmo, parece-nos que não será pela referida via que o mesmo instituto verá reforçada a sua capacidade tecnológica.

A modernização, aqui defendida, deve ser vista numa perspectiva mais ampla. Tem que ser a modernização da administração pública para que os vários órgãos que dela fazem fazer possam estar interligados e adoptar procedimentos uniformizados.

Finalmente, ainda no campo da modernização, deve haver uma maior aposta na valorização e formação do capital humano e um trabalho de maior divulgação das questões atinentes à propriedade industrial para que a sociedade – de modo particular os empresários – aumentem a sua cultura a respeito deste tema. No que toca à valorização e formação do capital humano, é defensável que os técnicos sejam bem remunerados e que lhes seja dada a oportunidade de frequentarem estágios, cursos e outras formações afins em órgãos internacionais de referência no capítulo da propriedade industrial.

No que concerne à divulgação das questões atinentes à propriedade industrial, não obstante os esforços que o órgão gestor tem desenvolvido, entendemos que deve haver um reforço através de campanhas, a nível dos órgãos de comunicação social e outras que se mostrarem uteis, com o fito de divulgar a importância que representa a propriedade industrial. Além disso, pensamos, devem ser desenvolvidas pelo mesmo órgão, junto da comunidade académica e científica, iniciativas que contribuam para o estudo e a pesquisa de temas ligados à propriedade industrial, como por exemplo, através da premiação e publicação dos melhores trabalhos.

Notas de Rodapé:

[1] Cfr. MIGUEL PUPO CORREIA, Direito Comercial, 14ª Ed., Ediforum, 2018, p. 333. Convém referir que em 2018 foi aprovado um novo Código da Propriedade Industrial, em Portugal, que transpôs as Diretivas 2015/2436  e 2016/943, ambas da União Europeia, e que veio revogar o que vigora anteriormente.

[2] Ibid.

[3] Para melhores desenvolvimentos, veja-se MOSES CAIAIA, “A violação do Direito sobre a marca no ordenamento jurídico angolano. O caso referente à nova marca do Governo”, Luanda, 2020, disponível em Angola Forex Specialist AO

[4] Aprovada pela Resolução nº 9/84, de 20 de Julho;

[5] A adesão à Organização Mundial do Comércio, abreviadamente designada por “OMC”, deu-se a 23 de Novembro de 1996.

[6] Aprovado pela Resolução n.º 22/05, de 19 de Agosto;

[7] Aprovado pela Resolução n.º 22/05, de 19 de Agosto.

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